Pela Rodovia Pamir, coração da Terra Central
Caminhões-contêineres chineses depois de cruzar o desfiladeiro Kulma na fronteira Tadjiquistão-China.
Foto: Pepe Escobar / Asia Times
Pepe Escobar, da Rodovia Pamir, Tadjiquistão, Asia Times
1/2 está em tradução (ing. aqui).
Viajar pela Rodovia Pamir, não é estar apenas diante de uma maravilha geológica e numa viagem mágica pela história e os costumes antigos. Também é mirar por uma janela privilegiada na direção de um renascimento comercial que estará no coração da expansão das Novas Rotas da Seda.
Khorog é a única cidade na cordilheira Pamir – seu centro cultural, econômico e educacional, sede dos vários campi da Universidade da Ásia Central, financiada pela fundação Agha Khan. Os ismaelitas dão tremenda importância à educação.
A província de Badakhshan sempre foi mundialmente famosa por seus lápis-lazúlis e seus rubis. A mina Kuh-i-Lal de rubis, ao sul de Khorog, é legendária. Marco Polo escreveu que em “Syghinan” (referia-se ao distrito histórico de Shughnan) “as pedras são escavadas em terras do rei e ninguém mais ousa escavar essa montanha, por medo de perder a vida”.
Shughnan cultuava o sol, construindo estruturas circulares com o correspondente simbolismo solar. É o que se vê em sepulturas na parte Ocidental da montanhas Pamir. Conforme avançamos para leste, a cultura pamiri, com sua profusão de pomares de damascos, maçãs e amoras, dá lugar à vida dos quirguizes seminômades, e as vilas irrigadas são substituídas por acampamentos sazonais de iurtas (mas não nessa época do ano, por causa do frio extremo).
Em Langar, última vila do Wakhan, pinturas em pedra mostram cabras montanhesas, caravanas, cavaleiros com estandartes e o símbolo ismaelita, de uma palmeira com cinco ramos. O arqueólogo A. Zelenski, fascinado, chamou os monumentos históricos do Wakhan de “a Grande Rota Pamir”. Aurel Stein destaca que essa foi a principal conexão entre Europa e Ásia, entre, portanto todo mundo clássico e a Ásia Oriental, com a Ásia Central entre elas. Estamos no coração da Terra Central.
Última parada antes de Xinjiang
Seguir o Wakhan sempre adiante, nos levaria até Tashkurgan, em Xinjiang. A fronteira do Paquistão, próxima da Rodovia Karakoram, está a apenas de 15km a 65km de distância, através de território afegão proibido.
É o desfiladeiro Koyzetek (4.271m) que finalmente leva ao platô Pamir Ocidental, que os chineses chamavam Tsunlin e Ptolomeu chamou Iamus, modelado como um prato raso gigante, com cadeias de montanhas nas bordas e lagos em altitudes recordes. Marco Polo escreveu, “A terra é chamada Pamier, e anda-se por ela durante 12 dias, nada encontrando além de um deserto sem casas ou qualquer coisa verde, de tal modo que os viajantes são obrigados a levar com eles tudo de que necessitam. A região é tão alta e fria que não se veem pássaros voando. E devo dizer também que, por causa desse forte frio, o fogo não queima com tanto brilho nem aquece tanto como é usual [ing. as usual], nem cozinha efetivamente.”
Murghab, povoada por quirguizes – cujos verões são passados em campos de pastagens muito remotos – fervilha em torno de um mini-bazaar em contêineres. Se seguimos o rio Aksu – antigamente considerado fonte de, além da água, também do nome do Oxus – alcança-se o último, mais remoto canto da Ásia Central: Shaymak – a apenas 80km da tríplice fronteira Afeganistão, Paquistão e China.
As Pequenas Pamirs estão rumo ao sul. Como escrevi para Asia Times há muito tempo, em 2001, foi provavelmente nessa área, onde estão as mais importantes passagens, chinesas e paquistanesas, das Rotas da Seda, que Osama bin Laden deve ter-se escondido, antes de mudar-se para Tora Bora.
De Murghab, tive de inspecionar a passagem do desfiladeiro Kulma (4.362m de altitude), nova fronteira da Nova Rota da Seda. A estrada – construída pela China – é impecável. Encontrei solitários motoristas chineses de caminhões-contêineres e negociantes de Kashgar dirigindo minivans made-in-China pelas montanhas Pamir, para serem vendidas em Dushanbe.
Imagem: As águas azuis profundas do Lago Karakul, não distante de Xinjiang.
Foto: Pepe Escobar / Asia Times
Nas Altas Pamirs, encontramos cerca de 800 antigos lagos criados por terremotos, atividade tectônica e geleiras. O lago Yashilkul (“Água Azul”), a 3.734m, congelado nessa época do ano, está num planalto por onde circularam caçadores da Idade da Pedra. V. Ranov, arqueólogo tadjique, encontrou pinturas rupestres de cavalos e carros, atributos de Mitra, o deus Sol dos persas. No período que vai do século 10º ao século 3º a.C, o platô foi habitado por tribos nômades sakas, falantes do idioma persa.
De Shughnan para Ishkoshim, eis-nos no ponto que os antigos chamavam de “o país dos sakas.”
Dos citas aos contêineres
As vastas estepes citas, que se estendem do Danúbio até a China, foram habitadas por vasta confederação de tribos. Então, nos séculos 2º e 1º A.C., as tribos começaram a mover-se em direção ao leste do estado greco-bactriano. Algumas tribos passaram a viver na montanhas Pamirs e vieram a ser o componente etnogenético da etnicidade pamiri. Alex, meu motorista, é verdadeiro pamiri de Khorog. É também a estrela da Rodovia Pamir, com seu carrão preto Land Cruiser. (“É maquina matadora / consegue tudo” [ing. “It’s a killing machine/ it’s got everything,” como imortalizado por Deep Purple.)
Imagem: Alex, pamiri de Khorog, “Estrela da Estrada”. Foto: Pepe Escobar / Asia Times
Destaque das montanhas Pamirs Ocidentais é o espetacular lago azul, de água salgada, Lago Karakul, formado há dez milhões de anos, por um meteoro. Sob o sol, é de uma radiante cor turquesa; nessa época do ano, é azul, azul muito, muito profundo, nada de “Lago Negro”, que seu nome implica. Karakul, por causa de sua leve salinidade, não estava congelado. Esse é o chong (grande) Karakul, irmão mais velho do kichi (pequeno) Karakul do outro lado da fronteira em Xinjiang, que tive o prazer de conhecer em minhas viagem pela Rodovia Karakoram.
As Altas Pamirs estão bem atrás do Karakul, e escondem o glaciar Fedchenko, de 77km de extensão. A leste do lago, se você sobreviver a uma trilha sob condições árticas, está Xinjiang. O monge andarilho Xuanzang, da primeira dinastia Tang, andou por aqui em 642 (pensou que o lago fosse povoado por dragões). Marco Polo aqui esteve em 1274.
Imagem: A vida é dura em Bulungkul, com a atmosfera de uma estação no Ártico. Temperaturas chegam a -63C no inverno. Foto: Pepe Escobar / Asia Times
Nossa base para explorar Yashilkul e depois Karakul foi Bulungkul – nessa época do ano, uma espécie de estação no Ártico, com apenas 40 casas servidas por painéis solares no meio do nada, e temperaturas que variam em torno de -11C. É vida dura, a mais dura das vidas. Contaram que no inverno a temperatura cai para -63C.
Adiante, pela estrada, tomei uma variante rumo leste, para ver o desfiladeiro Kulma, a 4.363m, fronteira oficial do Tadjiquistão com a China, à qual se chega por uma estrada construída pela China – e por quem seria?! –, aberta em 2004 acompanhando a antiga Rota da Seda.
A fronteira tadjique-quirguiz, no desfiladeiro Kyzyl-Art, pareceu cena de Stalker, de Tarkovsky, desolação absoluta, ao estilo soviético, exceto por um taxi partilhado, carregado de quirguizes a caminho de Khorog. Dali, é uma viagem espetacular, de carro, até os cruzamentos de Sary Tash, e pelo estonteante desfiladeiro Taldykm, a 3.615m de altitude, rumo a Osh, portal de entrada para o vale Ferghana.
Imagem: O desfiladeiro Taldyk, no sul do Quirguistão, até Osh. Foto: Pepe Escobar / Asia Times
Ao longo de toda essa hipnotizante jornada pela Ásia Central/Terra Central, especialmente nos bazaars, veem-se em detalhes os pontos em que se cruzam o nomadismo pastoral e a cultura de irrigação, fertilizados século após século pelo comércio transcultural da Rota da Seda, envolvendo pastores de rebanhos, fazendeiros, mercadores, todos eles parte do comércio de mercadorias e de provisões para as caravanas.
Giramos no vórtice de influências sociais, religiosas, científicas, estéticas e ideológicas imensamente ricas – especialmente da Pérsia, da Índia, da China e do Irã. A mudança de comércio por terra, para comércio por mar, no século 16 – início da dominação europeia sobre o mundo – jamais apagou de fato as rotas tradicionais para a Índia via Afeganistão, para a China via Xinjiang e para a Europa via Irã. O comércio ainda é o principal fator na vida da Ásia Central.
Hoje, a Rodovia Pamir é um microcosmo privilegiado do que lentamente, mas ininterruptamente, vai-se convertendo na intersecção entre as Novas Rotas da Seda e a Eurásia Expandida – com seus grandes nodos configurados como Rússia, China, Irã, Paquistão e – talvez se possa esperar – Índia.
Encruzilhada definitiva, derradeira, de civilizações, a Terra Central está de volta – mais uma vez –, no coração da história.
[Fim da 2ª e última parte dessa série.
A 1ª parte – que está sendo traduzida – pode ser lida (ing.) em Asia Times, aqui].
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