Por onde andamos

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Em São Paulo, Salvador e Recife boas práticas para tornar as calçadas brasileiras inteligentes e aprazíveis para o turismo.

Pela maioria das calçadas brasileiras, caminhar e tropeçar, é só começar. E se o caminhante seguir contemplando o infinito, então, é acidente na certa! Estudo feito em 2010, pelo Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, apontou que 18% das vítimas de quedas atendidas na unidade haviam caído nas calçadas. Em Recife, depois dos acidentes com motos, os escorregões nas calçadas são a causa mais comum deinternações nas emergências. Em Salvador e outras metrópoles, esses registros também são usuais.

Salvo as calçadas das zonas mais nobres das orlas de Recife, Salvador e Fortaleza — entre outras raras exceções em Belo Horizonte, nas grandes cidades das fronteiras agrícolas e em poucos municípios do Sul — passeios públicos inteligentes deixaram de fazer parte das políticas públicas, nas últimas décadas.

A displicência de cima contamina o cidadão, indiferente ao fato de as calçadas serem o meio 1 de mobilidade. Em algum momento, qualquer motorista também é pedestre — e aos registros que 35 % da população vai à pé para o trabalho, conforme levantamento do Ministério das cidades feito em 437 municípios.

Em pleno século XXI, os donos de lotes no Brasil mantém uma visão escravagista. Para o pedestre, eles sempre reservam os menores e piores espaços”, avalia o arquiteto baiano, Isaías Carvalho Neto, autor do livro Memória Urbana: uma poética para a cidade, no qual resgata o modelo urbanístico de Salvador dos anos 1910 a 1970, e reflete sobre os desafios dos atuais projetos.

Segundo ele, em geral, os gestores brasileiros têm apostado em projetos contemporâneos, não pensam em políticas públicas para o coletivo, despercebem o pedestre, prestigiando os donos de automóveis.

“Na arquitetura modernista, as calçadas centrais de Salvador eram sempre levadas em conta nos projetos. As praças e calçadas da cidade baixa, eram aprazíveis e bem frequentadas. Hoje, se descaracterizaram pela falta de manutenção”, conta. É o bar que enche as calçadas de mesas. São os piquetes, os carros, o lixo, os entulhos e os obstáculos diversos no caminho.

Para o arquiteto, os novos passeios públicos se tornaram individualistas: sem alternativas de uso como espaços de encontros, lazer e convivência coletiva. Se sentir seguro e confortável nesses locais precários, quem há de?

Foto: Arquivo Pessoal

Ricky Ribeiro, idealizador do Mobilize
Ricky Ribeiro, idealizador do Mobilize

Mobilize-se

Incomodado com os tais modelos de desenvolvimento — ultrapassados na maioria as cidades do mundo que desenvolvem projetos em outra direção — o administrador publico paulista, Ricky Ribeiro, idealizou o portal Mobilize (www.mobilize.org.br), o primeiro no país a produzir e distribuir, numa plataforma única, conteúdos sobre mobilidade urbana e sustentável a fim de destacar a urgência das discussões nos municípios.

Imobilizado há cinco anos devido a uma esclerose lateral amiotrófica, Ricky não permitiu que a doença, que impede seus movimentos e sua fala, o paralisasse. Em vez de lamentar a limitação, ele optou por exercitar o cérebro. Com a experiência que adquriu em Barcelona, onde fez mestrado em Sustentabilidade, na Universidade da Catalunha, ele desenvolve o Mobilize e as campanhas nacionais, além de supervisionar diariamente — por meio de um leitor óptico que interpreta os movimentos da sua pupila — os conteúdos produzidos pela equipe de parceiros do portal. E revela a estratégia: “Brilho no olho e paixão pela causa.”

Em três anos, o Mobilize atingiu mais de um milhão de acessos, promoveu debates com secretários e prefeitos de todas as regiões do país, além de mais de 50 parceiros, — mantenedores, de alguma forma do portal — patrocinadores, voluntários, arquitetos, jornalistas, administradores, engenheiros, urbanistas, economistas, representantes de associações, deficientes e cientistas.

Entre os links mais acessados está o sobre calçadas, no qual são divulgados estudos inéditos sobre as condições dessas vias nas maiores capitais brasileiras. Lá são encontradas informações a respeito de legislações, normas, infográficos, estatísticas e fotos — tudo apurado a partir do diagnóstico em 200 ruas do país. Salvador, Fortaleza, Recife e, recentemente, Aracaju integram a agenda visitada.

Os relatórios avaliam calçadas urbanizadas há mais de 50 anos, em áreas com ampla circulação de pedestres, pontos de ônibus e hospitais. No Nordeste, Fortaleza e Aracaju têm os melhores passeios. A Avenida Oceânica, em Salvador, recebeu 10. A boa nota, porém, não impediu que a capital da Bahia ficasse entre as três cidades com as piores calçadas do Brasil.

“As calçadas da orla de Aracaju são interessantes. Têm sombra, iluminação e equipamentos urbanos. Mas estão longe do patamar das dos países europeus. O fato de a cidade ser plana e a visão dos últimos administradores públicos ajudou”, avalia Marcos de Souza, jornalista que gerencia a pesquisa. “Com algumas exceções, as cidades visitadas têm seis ou sete passeios eficientes. O resto, são precários”, lamenta.

Quando entregamos os relatórios finais aos responsáveis, muito se discutiu sobre novos projetos de mobilidade urbana em diversos municípios. Porém, pouco mudou na maioria deles. Por isso, resolvemos voltar em 2014 às mesmas cidades onde fizemos os levantamentos para saber por quais motivos os projetos não foram adiante”, justifica o jornalista.

No âmbito federal, a elaboração do primeiro portal brasileiro sobre mobilidade reaqueceu os debates sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que exige dos Municípios brasileiros a implantação e a manutenção de calçadas acessíveis nas vias de maior passagem.

Com campanha “Mobilize-se, mexa-se, exija transporte público de qualidade, ciclovias e calçadas decentes” foram elaboradas as cartilhas com normas para melhorar a construção das calçadas. Entre as diversas lançadas, as de Londrina, Blumenau, Foz do Iguaçu e São Paulo. Alguns municípios atualizaram suas leis. Outros como Salvador, buscam mais dados.

A Superintendência de Ordenamento e Controle do Município (Sucom) pesquisa a questão dos bares colocarem mesas e cadeiras nas calçadas, comprimindo motoristas e pedestres a um espaço mínimo de circulação. Cultura que transforma a circulação em bairros como a Pituba e o Itaigara numa baderna, nos finais de semana.

Na Bahia, um dos levantamentos mais consistentes sobre o assunto foi organizado há 7 anos pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia da Bahia (Crea/BA): o Guia Prático para a Construção de Calçadas. Cartilha que apresenta as formas de fazer uma calçada, detalhando a sinalização tátil e outras normas à acessibilidade. A iniciativa contou com a participação de diversas instituições de Salvador. O documento, não colocado em prática, pode ser consultado no site do Crea/BA.

REGRAS E SUGESTÕES

A legislação das capitais nordestinas e da maioria das cidades brasileiras estabelece que a responsabilidade pela construção e manutenção das calçadas é do proprietário e que o Município instituirá multas para os infringentes. Já as ‘rotas estratégicas’ — de concentração de pedestres e serviços públicos — são das prefeituras.

Para Marcos de Souza isso significa, primeiro, enviar o fiscal até o dono do imóvel, explicar as regras, as vantagens para ele, os vizinhos e a população, dar um prazo e, só depois, se a solicitação não for considerada, multar.

Já o arquiteto baiano Isaías Neto destaca que para uma mobilidade urbana adequada, não basta os prefeitos saírem construindo e padronizando calçadas, “o que é até relativamente barato, se comparado aos investimentos feitos em viadutos e nas avenidas de vales. As calçadas precisam estar integradas com ônibus, metrô, os BRTs e os VLTs, além de dialogar com a identidade da comunidade.”

Na opinião dele, a mobilidade sustentável deve partir de um plano diretor (PD) participativo que defina o zoneamento urbano. “As alterações têm resultar de discussões com todos os entes que representam os moradores e quem mais quiser contribuir sobre quais modificações a cidade deve sofrer. As cidades devem ser feitas para as pessoas terem qualidade de vida, inclusive os deficientes”, pontua.

Ele critica a prefeitura local por ter elaborado três planos diretores nos últimos oito anos. “PD é pensado para décadas. Hoje, quem vive em Salvador desconhece qual é sistema viário e quem visita a cidade pergunta onde realmente fica o centro. A população não consegue identificar qual a área de comércio, lazer ou habitação. Sem limites, as pessoas vão se apropriando do espaço alheio.”

“Calçadas inteligentes são uma parte essencial do conjunto mobilidade sustentável”, ressalta o presidente da Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP), Eduardo Moraes.”Organizar essa equação entre políticos, empresários e cidadãos será um dos desafios para gestores públicos, nas próximas décadas.”

Moraes defende que a construção de calçadas precisa antever em que as cidades se transformarão nos próximos 30 anos e acrescenta, que, no caso das cidades históricas, os projeto devem respeitar a identidade e a memória do lugar. “A caminhabilidade é uma questão social, econômica e turística das cidades inteligentes no mundo inteiro.”

Assinala que tem se surpreendido, inclusive, em cidades históricas com o “imediatismo” de alguns governantes. Em suas viagens por Salvador, Recife e outras cidades, nas quais a ABCP orienta e promove estudos sobre o cimento e suas aplicações, ele percebe — há vários anos — que em lugares seculares como o Pelourinho e outros, as reformas de calçadas e ruas não têm mais seus pisos recuperados com o critério de antigamente.”Tenho visto muitos paralelepípedos e pedras portuguesas cortados de forma irregular, sem nenhum esmero”, comenta.

O engenheiro também defende a fiscalização por parte das prefeituras, com as prestadoras de serviços, além “visão de longo prazo”, a exemplo das cidades europeias, nas quais os calçamentos priorizam a tecnologia e a qualidade. “Os passeios são feitos para durar pelo menos 100 anos e não apenas 2, argumenta.

Segundo o presidente da ABCP, embora sejam um pouco mais caros, os piso intertravados são os mais sustentáveis, o que torna a relação custo-benefício atrativa. “Esse material vem sendo usado em suas diferentes possibilidades em larga escala em muitos países, porque acaba sendo mais ecológico e aumenta a permeabilidade do solo. Para Moraes, em vez se se preocuparem com quantidade sem qualidade na hora de construir as calçadas, os gestores públicos e as construtoras devem aproveitar os avanços que as tecnologias de ponta e a expertise que o setor têm.

LADRILHOS

Enquanto a realidade das calçadas brasileira não muda na velocidade desejada pelos pedestres, nossos personagens seguem empreendendo — dentro das suas possibilidades e universos, por onde circulam conceitos, conhecimentos e ações para cidades mais gentis. Eduardo Moraes tem disseminado as novas tecnologias de construção e como elas se relacionam com a mobilidade pelo Nordeste, dentro da imensa cadeia que integra a construção civil.

Outra empreendedora social no quesito mobilidade é a administradora de empresa paulista Letícia de Sá, 24, produtora do blog Sampa à Pé!, projeto que fundou na capital paulista para incentivar as pessoas a andar mais (sampape.com.br), que recentemente também aderiu a rede de discussões do portal Mobilize. Nele, a caminhante, que “paleta” diariamente nove quilômetros diários, escreve sobre projetos de leis locais, proximidade e acessibilidade dos centros, pontos comerciais, passeios e paradas.

Foto: Letícia de Sá

Aqui passa um rio, Rio Verde, Vila Madalena- São Paulo Crédito: Letícia de Sá

Além de mapear opiniões, atrações e distrações, ela constrói um diversificado painel fotográfico no instagram @porondeandeisp, no qual registra curiosidades, arte urbana ou atrocidades que os pedestres enfrentam. O foco é São Paulo, mas, sempre que viaja, Letícia coleta bons exemplos para o Brasil, como fez em Montevidéu, São Francisco e em cidades do Nordeste, nas quais identificou cidadãos que agraciam a si, a vizinhança e aos demais pedestres: os dispostos a manter calçadas limpas e desimpedidas, a aparar a grama do passeio, a sinalizar pontos urbanos importantes em bonitas placas nas árvores ou a colocar criativos azulejos no chão. “Os passeios deveriam ter uma gestão pública, inclusive, por uma questão ideológica do que é espaço público. Sem perder a criatividade gentil”, deixa seu recado.

SE ESSA RUA, SE ESSA RUA FOSSE MINHA, EU MANDAVA MOSAICAR…

Foto: Mario Neutzling

No Itaigara, o belo resultado dos canteiros com mosaicos
No Itaigara, o belo resultado dos canteiros com mosaicos

Em Salvador, o cirurgião plástico, escultor e ambientalista, Mário Amici, 46, levou a cantilena de roda ao pé da letra: desenvolveu um chamativo e inovador projeto de colocar mosaicos e plantas nas calçadas em frente ao prédio onde mora no Itaigara, bairro nobre de Salvador.

O primeiro passo foi solicitar a vistoria do técnico da Secretaria de Obras Públicas da Prefeitura para garantir o alvará.”Demonstrei para ele que pesquisara à fundo as normas da Companhia de Eletricidade da Bahia, além das cartilhas sobre a construção de calçadas das Prefeituras de São Paulo, Maringá, Porto Alegre e Barcelona.”

Itaigara antes da arborização
Itaigara antes da arborização

Em paralelo aos estudos e à licença, Mário Amici criou um movimento no bairro, o Apita – Amigos pelo Itaigara —, que agrega moradores, síndicos e lideres locais na busca de apoio para projetos desenvolvidos por quem vive ali. A proposta de uma arborização inovadora — que criasse uma identidade para o Itaigara — foi lançada numa reunião com a presença de síndicos de prédios,empresas e administradores escolares. De início, os moradores dos dois edifícios vizinhos ao prédio de Mário resolveram financiar a causa.

Há oito meses, o projeto de arborização transformou-se em um vistoso canteiro com 36 mudas decoradas. Um investimento de R$ 12.000 reais, conforme Amici. Aos síndicos dos prédios apoiadores, encantou o argumento de que um imóvel num bairro arborizado chega a valorizar 30% a mais, segundo estudos da Universidade de Washington.

Nas calçadas em frente ao prédio do cirurgião plástico e escultor foram plantados Felícios de porte médio. “Além de bonita, a espécie não interfere na piscina do prédio vizinho nem na rede elétrica, com a vantagem de não exigir podas constantes. No outro lado da rua — onde ainda não há mosaicos ou passeio — plantamos Ipês Roxos, árvores de grande porte, com exuberante floração anual.”

A identidade inovadora do Itaigara aparece na decoração dos mosaicos nos 36 canteiros que já foram plantados. São figuras ou dizeres que não se repetem: patinhos, trenzinhos, estrelas, cruzes de malta, lagartixas e outros símbolos e signos multicoloridos ou espelhados, além de frases como “gentileza gera gentileza”; “amor e paz”; “respeito” e outras que vão circundando os canteiros, distraindo e agradando quem passa.

“Idealizei e supervisionei tudo”, conta Amici, orgulhoso. Uma construtora quebrou o passeio e fez as molduras. Os mosaicos e a pintura foram executados pelos mosaicistas do atelier de Eliezer Nobre, conhecido artista de Salvador. Ao todo, 10 pessoas, em diferentes momentos. Gente que transformou molduras de argamassa moldada, azulejos e cerâmica em arte e exemplo a ser replicado em outras ruas do Itaigara. Outra consequência positiva foi a transformação espontânea de atitude dos moradores dos prédios vizinhos. “A calçada, que era um depósito de lixo e fezes de cães, passou a ser mantida limpa pelos pedestres, que se não cansam de elogiar a iniciativa.”

Emocionado, o idealizador, — que também é um ecologista atuante há décadas, entende que está fazendo a parte dele, tomando por lema do seu Movimento: “Por onde passe, deixe melhor” associado à frase de Gandhi que diz, “seja a mudança que você quer ver no mundo.”

* Nota da Editora: Esta matéria estará sendo publicada no Caderno de Sustentabilidade da Construir Nordeste, no site Mobilize e no Blog Sampa à Pé!

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